sábado, 15 de julho de 2023

IGNORANDO OS CIVIS DO SUDÃO

1.

Após o fracasso das diplomacias dos Estados Unidos e da Arábia Saudita em obter mais um curto e relativo cessar-fogo no Sudão, o Egito convocou encontro de vizinhos do país em guerra. Da reunião saiu apenas mais um apelo à paz, daqueles que até os beligerantes fazem. Ditaduras vizinhas com as da Eritreia ou Chade (para falar só dessas) presentes na reunião, não estão nada interessadas numa verdadeira solução do conflito, ou seja, retomar a transição democrática, interrompida pelas duas forças armadas hoje em choque.

Ponto comum à movimentação dos Estados Unidos, Arábia Saudita, Egito e seus convidados é limitarem a busca de solução aos estados maiores dessas forças, deixando de lado as forças civis que constituem um importante contra-poder interno, com capacidade de pressão já demonstrada sobre os militares. É elementar para quem conhece os perfis das atuais chefias de guerra no Sudão que elas só vão parar se forem seriamente pressionadas.

A esta limitação diplomática – talvez intencional – soma-se a ignorância da larga maioria da media internacional, com raras exceções. Na media de língua portuguesa se há exceções nem se notam. Aliás, não é a primeira vez que, pelo silêncio, isolam agrupamentos ou iniciativas internas de vários países assolados por senhores da guerra.

Sobre o Mali, com razão destacam a presença da empresa Wagner e a retirada da Missão da ONU, mas não têm espaço para referir os movimentos oposicionistas malianos e os cerca de 75% de abstenção no recente referendo organizado pela junta militar. O mesmo acontece sobre a República Centro-Africana: falam da Wagner e da proposta de nova Constituição pelo governo, sem atribuir importância à acusação pela oposição democrática de que essa Constituição abre caminho a presidência vitalícia do país. No Leste da R.D. Congo os olhares diplomáticos e mediáticos vão para os governos de Kinshasa e Kigali, apesar da constante e arriscada atividade de movimentos sociais, como o Lucha, pelos direitos humanos.

2.

Todos os países africanos – incluindo os de língua portuguesa – têm movimentos sociais indispensáveis às democratizações e à definição de estratégias de desenvolvimento. Acordos de natureza vária, feitos no continente africano (ou sobre ele), desde os anos 1970, falharam em virtude do monopólio atribuído a formações políticas autoritárias ou totalitárias e discriminação contra agrupamentos de todas as dimensões, espontâneos e até clandestinos com frequência, reais porta-vozes da sociedade.

No Sudão, os comités de resistência estão ativos a nível de bairro ou pequena localidade, desde a queda de Omar El Bachir, ela própria resultante da ofensiva de um sindicato clandestino. Hoje, alguns deles são denominados comités de urgência, mantendo dispositivos de entre-ajuda no abastecimento, assistência médica, rotas de fuga e acolhimento. Grande parte realiza patrulhas ou observações sobre presenças militares nas proximidades e dispõem de canais de informação atualizada.

3.

É uma vasta rede que cobre quase todo o país. Alguma media mundial, com dificuldade em colocar correspondentes no terreno tem, recentemente, citado elementos dessas fontes de informação.

A coordenação destes comités inclui influentes políticos civis e militantes mais jovens, com experiência e coragem perante os riscos inerentes a uma situação deste tipo. Marginalizá-los, tanto nas articulações diplomáticas como nos noticiários, equivale a considerar que o crime compensa. Como já aconteceu em outros cenários.

Jonuel Gonçalves/15.07.23

 

 

 

 

 

3 comentários:

  1. Comentários excelentes: concisos é claros, contribuindo para conhecermos focos de beligerância no continente africano

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  2. Um continente onde a vida se originou cuja população sustentou a exuberância europeia. É estarrecedor ver como a colonialidade segue contaminando o solo, engendrando o estigma de países atrasados em guerras/ destruições infinitas.

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