Como
podia Pero Vaz de Caminha saber que nesta terra em se plantando tudo dá? Ele
mal saiu da praia quando aqui esteve há mais de 500 anos e nem sabia onde
estava, pois toda aquela armada pensou ter chegado em uma ilha e, apesar de
verem ali muita gente, se proclamaram descobridores do local. Porém, sobre
plantar e colher, foi palpite e acertou. Cinco séculos depois o Brasil é uma
das maiores potências agro-alimentares do planeta.
Já
Gilberto Freyre, no meio do século XX, dispondo de amplos meios de observação e
análise, errou quando previu que o Brasil ia se tornar em “democracia racial”.
Desde logo o erro é que não há “democracia racial”, só é democracia se não for racial,
quer dizer, para todos. Na verdade, “democracia racial” era o apartheid, regime
beneficiando os brancos com eleições, liberdade de movimentos e oportunidades
racializadas.
Para
um brasileiro nascido fora do Brasil no século XX, aqui chegado pela primeira
vez procedente da África com dezoito anos recém completados, mas já dois anos e
meio em processo insurrecional perto da África do Sul, palpites desses lhe causaram
entre estranheza (“será que o cara não sabe o que é democracia?”) e revolta
(“só o regime de Pretória pode aceitar essa afirmação”).
Mais:
esse jovem cidadão também já tinha lido e ouvido resumos clandestinos de um
livro de Frantz Fanon cujo título apresenta o racial como máscara e, após ler
livremente todo o livro, ficou convencido disso até hoje. Convicção implícita
nas várias formas insurrecionais então em curso na África Austral, onde os
Freedom Fighters se propunham criar sociedades não-raciais.
A
ignorância de Caminha, sobre quem descobriu esta terra, era generalizada. Por
um lado, decidiram que descobridor só podia ser europeu, por outro, erravam nas
designações. Colombo no Caribe pensou ter chegado à Índia e, sem hesitar nem
perguntar, chamou os habitantes de índios que durante séculos fingiam não ligar,
mas agora ligam. Mais tarde, se enganaram de novo confundindo a baía de
Guanabara com a foz de um rio e quando chegaram na foz de um rio africano não
fizeram como Colombo, perguntaram às pessoas da margem, mesmo assim erraram. Na
tradução.
A
propósito dessas “descobertas”, quem ouviu há meio século o moçambicano
Honwana, declarar “chateia-me quando dizem que fui descoberto”, sabe que é
engano propositado porque insistem nele e não fazem diferença entre descobrir
uma terra e estabelecer uma rota marítima e comercial. Abrir rotas entre
continentes, até hoje deve ser motivo de orgulho para quem abre, mas não
precisa exagerar.
Porquê plantar cana no
Brasil?
Quanto
à mencionada foz de rio africano e vizinhanças, rapidamente se transformou em
ponto estratégico na formação do Brasil, num volume largamente acima dos
palpites iniciadores. Aquele mesmo cidadão, até hoje, considera pertinente a
dúvida levantada em livro existente desde 1944, de Eduardo Correia Lopes, que
Gilberto Freyre não leu ou preferiu não dar importância. Editado em Portugal,
então sob ditadura de um amigo de Freyre, deixou a interrogação sobre capturarem
massivamente negros africanos para plantar cana de açúcar no Brasil e não a
plantarem então na própria África, sendo semelhantes as condições naturais.
Fosse
porque fosse, depressa o Brasil se encheu de plantações de cana e o litoral de
Angola de portos para exportar escravos. Eram várias as rotas que o
mercantilismo abriu entre o Atlântico africano e as Américas, mas uma delas,
dos portos angolanos aos brasileiros, atingiu 39% do total traficado e, em
breve, os resultados acirraram as lutas entre europeus.
A
conquista holandesa das plantações pernambucanas levaram os mesmos holandeses a
conquistar os maiores portos angolanos com suas adjacências fornecedoras de
escravos. Nesse meio termo, em Angola, a rainha Nzinga passou a preferir os
holandeses no negócio de cativos – Amsterdam pagava melhor que Lisboa – e em
Pernambuco eclodiu uma guerra dos colonos portugueses contra os homólogos
holandeses, ambos mobilizando forças locais, quer de povos originais quer de africanos
ou descendentes.
Poderosa
logística a partir da Bahia abasteceu a resistência anti-holandesa, em paralelo
com as negociações na Europa, descritas por Evandro Cabral de Mello, pelas
quais Portugal transferiu ouro para as contas dos Países Baixos, uma conjugação
facilitadora do restabelecimento português em Pernambuco. No balanço da
mobilização, a narrativa oficial apresentou a resistência como sendo
multirracial, porém, olhando as funções pós guerra, as diferenças eram
monumentais.
João
Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros, assumiram altas funções
governativas e no tráfico, primeiro no Brasil, em seguida em Angola, na
sequência da reimplantação lusa e da troca de correspondência entre o Padre
António Vieira e Lisboa, cujo argumento final para convencer a sede do Império
foi “sem pretos não há Pernambuco e sem Angola não há pretos”. Do indígena
Filipe Camarão quase nunca mais se falou e o negro Henrique Dias foi nomeado
“governador dos pretos”, ou seja, um cargo fachada de negro para negros, sem
poder sobre o sistema.
É
bom lembrar, não vá o modelo se repetir nas campanhas antirracistas do século
XXI.
Sobre
o desenrolar da escravatura, as atenções do referido cidadão brasileiro
recém-chegado da África, não eram os números, porque já os conhecia e conhecia
seus efeitos nos pontos de partida e de destino. Era a comparação com o Haiti e
porque a revolta nesse país caribenho também não ocorreu aqui, país de
escravatura mais antiga, escravizados em muito maior número e os primeiros
quilombos terem precedido os refúgios cimarrons do Caribe. E se não ocorreu no
mesmo momento ou antes, porque continuou não ocorrendo depois da independência.
Novas
elites e subversão cultural
No
fim dessas contas, seria o regime pós Guararapes que prevaleceu no Sete de Setembro,
de tal forma que a economia do Brasil só se descolonizou a partir da década de
1930 e a sociedade manteve traços de colonialidade até hoje. O poder do atraso
e a História lenta são muito fortes, como se vê nas obras de José Sousa Martins.
Se forem lidas em companhia dos textos de Fanon, ajudam a entender por que hoje
estamos nesta fase, quer dizer, parados na frase tornada célebre há décadas por
Stefan Zweig - país do futuro – aliás, implícita desde há pelo menos dois
séculos em outras afirmações, nacionais ou exteriores.
O
perfil cultural é que se consolidou sempre em contradição com o poder,
colonial, pós colonial ou mais atual. Logo
na geração seguinte ao começo da colonização europeia, já se subvertia a língua
do colonizador e se criavam bases culturais de produção local. Primeiro como
prolongamento de tradições trazidas da África e da Europa e auto-defesa das
normas de vida pelos povos originais. Em seguida, com introdução de novos
elementos nessas tradições e estilos, uns influenciando os outros pela base. Em
todos os momentos, essa extensão e produção local de cultura se fazia contra as
elites que também se iam criando, a ponto de várias das manifestações serem
disfarçadas ou mesmo avançando em segredo.
Esta
trajetória coloca o Brasil na área cultural creola, com esta ortografia para
evitar confusão com expressões racializadas só existentes no Brasil. Aqui estamos na definição estabelecida no
“Elogio da Creolidade” de três escritores da Martinica ou nas observações do
haitiano René Depestre quando refere subversão da língua do colonizador e existência de creolidades sem língua creola.
Na verdade, a creolidade é resultado de violentos confrontos culturais
inerentes à colonização e sua posterior evolução para primeira globalização
cultural. Não tem cor.
A
vasta maioria da população brasileira está neste caso, excetuando apenas alguns
apologistas do mimetismo.
Espaço
público e linhas de pobreza
As
elites de hoje dão continuidade a elites de fases anteriores, controlando
totalmente a política e a macro-economia, mas, no plano socio-cultural, hoje,
quem disfarça são elas, com discurso sem efeito prático e desperdiçando os
focos de contato que poderiam constituir rampas de lançamento para um país de
todos e todas.
Na
configuração do Brasil existente, esses focos valem muito, quer olhando de
dentro da teoria sociológica dos espaços públicos, quer através de estatísticas
recentes sobre fome. Aqui, a noção de contato pode ser inspirada pela linha de
uma revista sul-africana (“Contact”) anti-apartheid dos anos de chumbo, mas
também pode situar-se nas referências à noção de proximidades, cujo autor
brasileiro mais recente não citamos porque ele pode não concordar com a
possível equivalência.
Comparando
com outros dois países de demografia multirracial, os grandes centros de
decisão dos Estados Unidos e África do Sul integram hoje personalidades dos
grupos historicamente oprimidos. Na África do Sul, essas personalidades são
larga maioria, enquanto nos EUA o ministro de Defesa é Negro e a ministra dos
Assuntos Internos é “Native American”. No Brasil nada sequer parecido, apesar das
dimensões do contato não racializado serem aqui muito mais altas em espaços
públicos - tipo transporte coletivo, shows musicais, ruas de entretenimento ou
sobrevivência, arquibancadas de estádios - que nos EUA e sobretudo na África do
Sul.
As
escolas públicas também, caso em que os norte-americanos e sul-africanos têm
feito esforço para chegarem a resultados no Brasil reproduzidos pela própria
estrutura social.
Josué
de Castro, contemporâneo de Gilberto Freyre, via o país sob prisma muito
diferente - o da “Geografia da Fome”. Na época em que viveu, a mais vulnerável
das situações brasileiras já estava ocupada pela conjugação de gênero, raça e
região, quer dizer, mulheres negras nordestinas. Recente pesquisa executada
pela Vox Populi sobre insegurança alimentar, assinalava, entre final de 2021 e
início de 2022, 33 milhões de brasileiros com fome, a algum nível de
intensidade ou periodicidade, sendo 20% dos pretos, 17% dos colonialmente
designados por “pardos” e 10% dos brancos. O pior quadro é o das famílias
dirigidas por mulheres negras, não sendo mistério saber onde mora a maioria
delas.
Não
é para fazer campeonato, todos estes percentuais são altos, mais altos ainda se
passarmos aos números por extenso. Sem nenhuma ironia, é constatação de outro
espaço de contato – o dos muito pobres.
Assim,
temos ambiente de espaços públicos sem repercussão nos centros de decisão e altos
percentuais de fome ou sub-nutrição, apesar do país ser potência no agro,
prevista até por Caminha sem sair das proximidades da praia em Porto Seguro há
séculos. No agregado são dois fatores de mudança.
Nem
é preciso ler Norbert Elias ou Manuel Castells para compreender a força que
corre no contato de espaço público. Se vencer os disfarces e os choques com
outros interesses, é base maior de ataque às colonialidades persistentes, à
cabeça das quais está o racismo. Por sua vez, a História, do Brasil ou do
Mundo, não disfarça que a pressão dos pobres conduziu às grandes mudanças. O
azimute, portanto, indica duas vertentes do mesmo desequilíbrio interligado,
exigindo serem desconstruídas em simultâneo ou vão se perpetuar.
Aquele
cidadão nacional nascido fora das fronteiras, hoje tem décadas suficientes e já
transitou de jovem a idoso, fazendo os possíveis (e impossíveis) para não lhe
aplicarem a sentença de descartável em mais uma discriminação, a do etarismo,
quer dizer, inútil pela idade, ou “não há lugar para velhos” lembrando romance
do Cormac McCarthy. Vive no bairro
Fonseca em Niterói, local onde predominam aqueles dois pontos de contato e a
própria História: antes de ser bairro foi fazenda açucareira. É só um dos
vários pontos de onde melhor se vê o Brasil e sua creolidade.
J. G.
Magnífico texto professor.
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