quarta-feira, 26 de julho de 2023

Brasil e sua Creolidade


Como podia Pero Vaz de Caminha saber que nesta terra em se plantando tudo dá? Ele mal saiu da praia quando aqui esteve há mais de 500 anos e nem sabia onde estava, pois toda aquela armada pensou ter chegado em uma ilha e, apesar de verem ali muita gente, se proclamaram descobridores do local. Porém, sobre plantar e colher, foi palpite e acertou. Cinco séculos depois o Brasil é uma das maiores potências agro-alimentares do planeta.

Já Gilberto Freyre, no meio do século XX, dispondo de amplos meios de observação e análise, errou quando previu que o Brasil ia se tornar em “democracia racial”. Desde logo o erro é que não há “democracia racial”, só é democracia se não for racial, quer dizer, para todos. Na verdade, “democracia racial” era o apartheid, regime beneficiando os brancos com eleições, liberdade de movimentos e oportunidades racializadas.

Para um brasileiro nascido fora do Brasil no século XX, aqui chegado pela primeira vez procedente da África com dezoito anos recém completados, mas já dois anos e meio em processo insurrecional perto da África do Sul, palpites desses lhe causaram entre estranheza (“será que o cara não sabe o que é democracia?”) e revolta (“só o regime de Pretória pode aceitar essa afirmação”).

Mais: esse jovem cidadão também já tinha lido e ouvido resumos clandestinos de um livro de Frantz Fanon cujo título apresenta o racial como máscara e, após ler livremente todo o livro, ficou convencido disso até hoje. Convicção implícita nas várias formas insurrecionais então em curso na África Austral, onde os Freedom Fighters se propunham criar sociedades não-raciais.

A ignorância de Caminha, sobre quem descobriu esta terra, era generalizada. Por um lado, decidiram que descobridor só podia ser europeu, por outro, erravam nas designações. Colombo no Caribe pensou ter chegado à Índia e, sem hesitar nem perguntar, chamou os habitantes de índios que durante séculos fingiam não ligar, mas agora ligam. Mais tarde, se enganaram de novo confundindo a baía de Guanabara com a foz de um rio e quando chegaram na foz de um rio africano não fizeram como Colombo, perguntaram às pessoas da margem, mesmo assim erraram. Na tradução.

A propósito dessas “descobertas”, quem ouviu há meio século o moçambicano Honwana, declarar “chateia-me quando dizem que fui descoberto”, sabe que é engano propositado porque insistem nele e não fazem diferença entre descobrir uma terra e estabelecer uma rota marítima e comercial. Abrir rotas entre continentes, até hoje deve ser motivo de orgulho para quem abre, mas não precisa exagerar.

                         Porquê plantar cana no Brasil?

Quanto à mencionada foz de rio africano e vizinhanças, rapidamente se transformou em ponto estratégico na formação do Brasil, num volume largamente acima dos palpites iniciadores. Aquele mesmo cidadão, até hoje, considera pertinente a dúvida levantada em livro existente desde 1944, de Eduardo Correia Lopes, que Gilberto Freyre não leu ou preferiu não dar importância. Editado em Portugal, então sob ditadura de um amigo de Freyre, deixou a interrogação sobre capturarem massivamente negros africanos para plantar cana de açúcar no Brasil e não a plantarem então na própria África, sendo semelhantes as condições naturais.  

Fosse porque fosse, depressa o Brasil se encheu de plantações de cana e o litoral de Angola de portos para exportar escravos. Eram várias as rotas que o mercantilismo abriu entre o Atlântico africano e as Américas, mas uma delas, dos portos angolanos aos brasileiros, atingiu 39% do total traficado e, em breve, os resultados acirraram as lutas entre europeus.

A conquista holandesa das plantações pernambucanas levaram os mesmos holandeses a conquistar os maiores portos angolanos com suas adjacências fornecedoras de escravos. Nesse meio termo, em Angola, a rainha Nzinga passou a preferir os holandeses no negócio de cativos – Amsterdam pagava melhor que Lisboa – e em Pernambuco eclodiu uma guerra dos colonos portugueses contra os homólogos holandeses, ambos mobilizando forças locais, quer de povos originais quer de africanos ou descendentes.

Poderosa logística a partir da Bahia abasteceu a resistência anti-holandesa, em paralelo com as negociações na Europa, descritas por Evandro Cabral de Mello, pelas quais Portugal transferiu ouro para as contas dos Países Baixos, uma conjugação facilitadora do restabelecimento português em Pernambuco. No balanço da mobilização, a narrativa oficial apresentou a resistência como sendo multirracial, porém, olhando as funções pós guerra, as diferenças eram monumentais.

João Fernandes Vieira e André Vidal de Negreiros, assumiram altas funções governativas e no tráfico, primeiro no Brasil, em seguida em Angola, na sequência da reimplantação lusa e da troca de correspondência entre o Padre António Vieira e Lisboa, cujo argumento final para convencer a sede do Império foi “sem pretos não há Pernambuco e sem Angola não há pretos”. Do indígena Filipe Camarão quase nunca mais se falou e o negro Henrique Dias foi nomeado “governador dos pretos”, ou seja, um cargo fachada de negro para negros, sem poder sobre o sistema.

É bom lembrar, não vá o modelo se repetir nas campanhas antirracistas do século XXI.

Sobre o desenrolar da escravatura, as atenções do referido cidadão brasileiro recém-chegado da África, não eram os números, porque já os conhecia e conhecia seus efeitos nos pontos de partida e de destino. Era a comparação com o Haiti e porque a revolta nesse país caribenho também não ocorreu aqui, país de escravatura mais antiga, escravizados em muito maior número e os primeiros quilombos terem precedido os refúgios cimarrons do Caribe. E se não ocorreu no mesmo momento ou antes, porque continuou não ocorrendo depois da independência.

                      Novas elites e subversão cultural

No fim dessas contas, seria o regime pós Guararapes que prevaleceu no Sete de Setembro, de tal forma que a economia do Brasil só se descolonizou a partir da década de 1930 e a sociedade manteve traços de colonialidade até hoje. O poder do atraso e a História lenta são muito fortes, como se vê nas obras de José Sousa Martins. Se forem lidas em companhia dos textos de Fanon, ajudam a entender por que hoje estamos nesta fase, quer dizer, parados na frase tornada célebre há décadas por Stefan Zweig - país do futuro – aliás, implícita desde há pelo menos dois séculos em outras afirmações, nacionais ou exteriores.

O perfil cultural é que se consolidou sempre em contradição com o poder, colonial, pós colonial ou mais atual.  Logo na geração seguinte ao começo da colonização europeia, já se subvertia a língua do colonizador e se criavam bases culturais de produção local. Primeiro como prolongamento de tradições trazidas da África e da Europa e auto-defesa das normas de vida pelos povos originais. Em seguida, com introdução de novos elementos nessas tradições e estilos, uns influenciando os outros pela base. Em todos os momentos, essa extensão e produção local de cultura se fazia contra as elites que também se iam criando, a ponto de várias das manifestações serem disfarçadas ou mesmo avançando em segredo.

Esta trajetória coloca o Brasil na área cultural creola, com esta ortografia para evitar confusão com expressões racializadas só existentes no Brasil.  Aqui estamos na definição estabelecida no “Elogio da Creolidade” de três escritores da Martinica ou nas observações do haitiano René Depestre quando refere subversão da língua do colonizador e  existência de creolidades sem língua creola. Na verdade, a creolidade é resultado de violentos confrontos culturais inerentes à colonização e sua posterior evolução para primeira globalização cultural. Não tem cor.

A vasta maioria da população brasileira está neste caso, excetuando apenas alguns apologistas do mimetismo.

              Espaço público e  linhas de pobreza

As elites de hoje dão continuidade a elites de fases anteriores, controlando totalmente a política e a macro-economia, mas, no plano socio-cultural, hoje, quem disfarça são elas, com discurso sem efeito prático e desperdiçando os focos de contato que poderiam constituir rampas de lançamento para um país de todos e todas.

Na configuração do Brasil existente, esses focos valem muito, quer olhando de dentro da teoria sociológica dos espaços públicos, quer através de estatísticas recentes sobre fome. Aqui, a noção de contato pode ser inspirada pela linha de uma revista sul-africana (“Contact”) anti-apartheid dos anos de chumbo, mas também pode situar-se nas referências à noção de proximidades, cujo autor brasileiro mais recente não citamos porque ele pode não concordar com a possível equivalência.

Comparando com outros dois países de demografia multirracial, os grandes centros de decisão dos Estados Unidos e África do Sul integram hoje personalidades dos grupos historicamente oprimidos. Na África do Sul, essas personalidades são larga maioria, enquanto nos EUA o ministro de Defesa é Negro e a ministra dos Assuntos Internos é “Native American”. No Brasil nada sequer parecido, apesar das dimensões do contato não racializado serem aqui muito mais altas em espaços públicos - tipo transporte coletivo, shows musicais, ruas de entretenimento ou sobrevivência, arquibancadas de estádios - que nos EUA e sobretudo na África do Sul.

As escolas públicas também, caso em que os norte-americanos e sul-africanos têm feito esforço para chegarem a resultados no Brasil reproduzidos pela própria estrutura social.  

Josué de Castro, contemporâneo de Gilberto Freyre, via o país sob prisma muito diferente - o da “Geografia da Fome”. Na época em que viveu, a mais vulnerável das situações brasileiras já estava ocupada pela conjugação de gênero, raça e região, quer dizer, mulheres negras nordestinas. Recente pesquisa executada pela Vox Populi sobre insegurança alimentar, assinalava, entre final de 2021 e início de 2022, 33 milhões de brasileiros com fome, a algum nível de intensidade ou periodicidade, sendo 20% dos pretos, 17% dos colonialmente designados por “pardos” e 10% dos brancos. O pior quadro é o das famílias dirigidas por mulheres negras, não sendo mistério saber onde mora a maioria delas.

Não é para fazer campeonato, todos estes percentuais são altos, mais altos ainda se passarmos aos números por extenso. Sem nenhuma ironia, é constatação de outro espaço de contato – o dos muito pobres.

Assim, temos ambiente de espaços públicos sem repercussão nos centros de decisão e altos percentuais de fome ou sub-nutrição, apesar do país ser potência no agro, prevista até por Caminha sem sair das proximidades da praia em Porto Seguro há séculos. No agregado são dois fatores de mudança.

Nem é preciso ler Norbert Elias ou Manuel Castells para compreender a força que corre no contato de espaço público. Se vencer os disfarces e os choques com outros interesses, é base maior de ataque às colonialidades persistentes, à cabeça das quais está o racismo. Por sua vez, a História, do Brasil ou do Mundo, não disfarça que a pressão dos pobres conduziu às grandes mudanças. O azimute, portanto, indica duas vertentes do mesmo desequilíbrio interligado, exigindo serem desconstruídas em simultâneo ou vão se perpetuar.

Aquele cidadão nacional nascido fora das fronteiras, hoje tem décadas suficientes e já transitou de jovem a idoso, fazendo os possíveis (e impossíveis) para não lhe aplicarem a sentença de descartável em mais uma discriminação, a do etarismo, quer dizer, inútil pela idade, ou “não há lugar para velhos” lembrando romance do Cormac McCarthy.  Vive no bairro Fonseca em Niterói, local onde predominam aqueles dois pontos de contato e a própria História: antes de ser bairro foi fazenda açucareira. É só um dos vários pontos de onde melhor se vê o Brasil e sua creolidade.  

J. G.

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