As
imposturas identitárias
Meu
pequeno ensaio “Imposturas identitárias – África e reflexo Brasil”, mal acabou
de sair e já sofre ataques nas redes por dizer na contracapa que, quando se
fala das raízes do Brasil, o racismo é uma das mais profundas, das que tem tido
vida mais facilitada pela ausência de amplo movimento antirracista e que
“identidade” é construção ideológica.
Na
verdade, têm surgido apenas campanhas descontinuas e movimentos identitaristas.
O Brasil não é caso único: as chamadas “identidades” em geral começam nas “raízes
ou origens” (sempre de forma legitimadora de seus próprios autores) e,
explicita ou implícitamente, terminam em propostas racificadas.
As
“identidades” que, em visão única, pretendiam substituir a cultura, a História
e as contradições sociais, viraram arma da discriminação, inimiga da Cidadania,
à qual vão ligando a tais “origens e raízes”, com se o mundo tivesse parado.
Criam muros de fragmentação interna ou desencadeiam xenofobia.
É
um quadro em desenvolvimento na Europa e Estados Unidos, através de movimentos
populistas com alto peso eleitoral e na África do Sul com vagas de agressão
contra emigrantes africanos. Na África a impostura é aberrante, pois as
fronteiras resultam quase todas do colonialismo.
A
colonialidade do poder tem também presença no Brasil, onde a forma de acesso à
independência determina alguns aspectos estruturais até hoje. As conexões
África-Brasil são importantes pois criam reflexos mútuos. A maior rota da
escravatura transatlântica ocorreu entre os portos de Angola e do Brasil e, nos
dois casos, o escravismo foi substituído pela “favelização” como condenação à
miséria ou pelo trabalho forçado no território colonial angolano.
Teóricos
favoráveis ao colonialismo apresentam a mestiçagem como prova da ausência de
racismo. Falso. Os próprios mestiços são alvo de racismo. No Brasil é mais
flagrante por ser o país com maior população mestiça do mundo e por sua cultura
popular ser mais mestiça ainda. A mestiçagem não é apenas um fenômeno
biológico, é também cultural, ambos iniciados muitas vezes na violência. Alguns setores transformam isso em “pecado
original” que procuram apagar com algo semelhante a genocídio estatístico:
anulam os mestiços, sejam afrodescendentes sejam de ascendência
ameríndio-branca, ficando sem saber o que dizer de outras mestiçagens.
Esta
é só uma faceta daquilo que as “identidades” de fato são: ideologias. Duas
delas presentes no Brasil, os supremacistas e os racialistas; aparentemente
opostos, na prática têm os mesmos pressupostos. Uns e outros precisam do
racismo, pois desaparecem se ele desaparecer.
Sobre
os critérios identitários, Amarthya Sen, ironiza mencionando uma dezena de
identidades sobre ele próprio. Michel Agier, assinala a incapacidade
identitária em acompanhar as transformações. Richard T. Ford, assinala a
demência de propostas, na sua cidade de São Francisco, das “identidades” de
ciclistas e de criadores de cães. Perante este quadro há também as propostas de
outros enfoques: o elogio da crioulidade, manifesto de origem antilhesa, o
afropolitismo de Mbembe e o simplesmente cosmopolitismo de Appiah. Para além da
contracapa, é nelas que o livro se baseia sobre prioridades de ataque à
impostura.
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