quarta-feira, 27 de abril de 2022

Texto sobre Livro

 

 

As imposturas identitárias

Meu pequeno ensaio “Imposturas identitárias – África e reflexo Brasil”, mal acabou de sair e já sofre ataques nas redes por dizer na contracapa que, quando se fala das raízes do Brasil, o racismo é uma das mais profundas, das que tem tido vida mais facilitada pela ausência de amplo movimento antirracista e que “identidade” é construção ideológica.

Na verdade, têm surgido apenas campanhas descontinuas e movimentos identitaristas. O Brasil não é caso único: as chamadas “identidades” em geral começam nas “raízes ou origens” (sempre de forma legitimadora de seus próprios autores) e, explicita ou implícitamente, terminam em propostas racificadas.

As “identidades” que, em visão única, pretendiam substituir a cultura, a História e as contradições sociais, viraram arma da discriminação, inimiga da Cidadania, à qual vão ligando a tais “origens e raízes”, com se o mundo tivesse parado. Criam muros de fragmentação interna ou desencadeiam xenofobia.

É um quadro em desenvolvimento na Europa e Estados Unidos, através de movimentos populistas com alto peso eleitoral e na África do Sul com vagas de agressão contra emigrantes africanos. Na África a impostura é aberrante, pois as fronteiras resultam quase todas do colonialismo.

A colonialidade do poder tem também presença no Brasil, onde a forma de acesso à independência determina alguns aspectos estruturais até hoje. As conexões África-Brasil são importantes pois criam reflexos mútuos. A maior rota da escravatura transatlântica ocorreu entre os portos de Angola e do Brasil e, nos dois casos, o escravismo foi substituído pela “favelização” como condenação à miséria ou pelo trabalho forçado no território colonial angolano.

Teóricos favoráveis ao colonialismo apresentam a mestiçagem como prova da ausência de racismo. Falso. Os próprios mestiços são alvo de racismo. No Brasil é mais flagrante por ser o país com maior população mestiça do mundo e por sua cultura popular ser mais mestiça ainda. A mestiçagem não é apenas um fenômeno biológico, é também cultural, ambos iniciados muitas vezes na violência.  Alguns setores transformam isso em “pecado original” que procuram apagar com algo semelhante a genocídio estatístico: anulam os mestiços, sejam afrodescendentes sejam de ascendência ameríndio-branca, ficando sem saber o que dizer de outras mestiçagens.

Esta é só uma faceta daquilo que as “identidades” de fato são: ideologias. Duas delas presentes no Brasil, os supremacistas e os racialistas; aparentemente opostos, na prática têm os mesmos pressupostos. Uns e outros precisam do racismo, pois desaparecem se ele desaparecer.

Sobre os critérios identitários, Amarthya Sen, ironiza mencionando uma dezena de identidades sobre ele próprio. Michel Agier, assinala a incapacidade identitária em acompanhar as transformações. Richard T. Ford, assinala a demência de propostas, na sua cidade de São Francisco, das “identidades” de ciclistas e de criadores de cães. Perante este quadro há também as propostas de outros enfoques: o elogio da crioulidade, manifesto de origem antilhesa, o afropolitismo de Mbembe e o simplesmente cosmopolitismo de Appiah. Para além da contracapa, é nelas que o livro se baseia sobre prioridades de ataque à impostura.

 

 

 

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