Um dos mais belos poemas do livro "Jeremias o Louco", de José Agostinho Baptista
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um amante assim nunca houve, disse cleópatra
quando o vi chegar, como poderia supor o que
vos afirmarei ?
cabisbaixo,
apoiado naquele bordão de forma imprecisa,
o andar errante,
os lábios trémulos, febris...
e os gestos eram de muito longe, como quem vem de
muito longe,
gestos de rei ultrajado, assim pensei.
e o olhar, ah aquele olhar líquido, fundo,
de cão perdido
despindo a paisagem, o pomar e o vale e o meu
corpo em fogo, refulgindo no ouro das vestes,
nas preciosas pedras, diamantes tantos, no
peito, nos dedos, revestindo os cabelos...
nunca houve um olhar assim,
rasgando a carne, as entranhas, a minha alma nómada
e repleta de impressões.
ninguém soube ao certo donde vinha,
que regiões conhecera,
que destino o trazia ali, ao império do oriente, ao
reino de alexandria.
o oráculo, afrodite a pitonisa, ptolomeu o sábio e
orim o mensageiro eunuco, só o nome retiveram
jeremias
JEREMIAS - vejam lá!
alguém partira entretanto, no rumo da terra
fenícia e da terra síria, combatendo sempre.
por isso jeremias conheceu a cidadela, a orgia,
os banquetes e a arte,
o palácio e os aposentos do palácio
e no mais vasto e indescritível adormeceu.
quando o procurei,
trémula, inebriada e só, ele nada disse e
tomou-me a mão
e fomos descendo, descendo
o nilo antes da cheia,
ouvindo a sua voz divina,
sentindo a sua boca que me subia na mais lenta
lentidão, em delírio.
nunca houve um amante assim...
alguém era o senhor da guerra, dos exércitos
e da frota
o senhor do vinho,
o senhor do êxtase;
jeremias era o deus implacável, avassalador e
estranho,
devorando o meu corpo perfeito,
louco de lágrimas e riso,
gemidos, gritos...
ardendo ardendo...
e a rainha que eu era desfalecia através do
oriente,
abandonada àquelas mãos ávidas,
àquela boca que me subia na mais lenta
lentidão, em delírio,
enquanto íamos descendo, descendo o
nilo da minha vida.
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